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quarta-feira, 26 de maio de 2010

A única fotografia conhecida de Cesário Verde


O dia em que nasceu Cesário Verde (25 de Fevereiro de 1855)

Depois de décadas terríveis, com invasões estrangeiras, guerras civis e uma miséria impensável, eis que, em 1851, veio a prosperidade. Infelizmente, não durou. No momento em que Cesário Verde nasceu, a 25 de Fevereiro de 1855, a situação económica apresentava sinais inquietantes. As chuvas anormais desse mês estavam a provocar uma crise nos cereais. Num país sem boas estradas e sem caminhos-de-ferro, isto representava pura e simplesmente a fome. Em Lisboa, o alqueire de milho atingia os 700 reis, uma quantia nunca vista. A 10 de Janeiro de 1855, numa aldeia próxima de Coimbra, os sinos tinham tocado a rebate, sinal para o povo se reunir, a fim de organizar um motim com o objectivo de impedir os comerciantes de transportar o cereal para fora.
No dia em que José Joaquim Cesário Verde nasceu - um domingo em que se celebrava o dia de S. Cesário - as cheias tinham alagado parte do país, incluindo a zona à volta de Lisboa, onde seu pai, um comerciante da Baixa Lisboeta, possuía propriedades. Durante uns dias, no meio do Entrudo, a pequena burguesia e a aristocracia tentaram esquecer tudo, optando a primeira por se divertir na festa organizada no casino Lisbonense e a segunda no baile organizado pelos marqueses de Viana. Os políticos pareciam igualmente predispostos ao divertimento. Na Câmara dos Pares, Costa Cabral decidiu atacar o duque de Saldanha com base em que, tendo este alegado doença a fim de não comparecer aos debates, fora visto, na noite anterior, em São Carlos, ouvindo, deleitado, a famosa cantora Alboni, ao que o ministro do reino, Rodrigo da Fonseca, ripostou que, sendo o facto verdadeiro, antes de sair para o teatro lírico, o presidente do Conselho se munira de um capote, a fim de não agravar a moléstia que o afligia. O incidente fez rir a Câmara. Outros, cá fora, não fizeram o mesmo: o povo via o preço do pão subir todos os dias, as exportações do vinho e do azeite haviam estagnado e corriam boatos de que o governo se preparava para mandar soldados para a guerra da Crimeia.
Durante a Primavera de 1855, a tensão social e política aumentou. A 26 de Abril, em carta a Lord Clarendon, o embaixador inglês em Lisboa, Howard de Walden, comentava da seguinte forma o que se passava no Parlamento: «Os deputados […] discutiram […] em geral de uma maneira tão desconexa e irregular que qualquer análise do que disseram é difícil.» A 4 de Julho, o odiado Costa Cabral, que chegara do exílio, apelava ao rei D. Fernando para demitir o presidente do Conselho. Conhecedor melhor do que ninguém a popularidade do marechal-duque de Saldanha junto do Exército, o regente considerou o pedido desajustado. O clima plácido da primeira metade da década de 1855 parecia estar em vias de se esfumar.
Apesar de tudo, o optimismo não desaparecera. Os jornais continuavam a exaltar a construção das vias-férreas, o Centro Promotor das Classes Laboriosas reunira-se, a fim de tentar convencer os seus membros a enviar produtos à Exposição Universal de Paris e os industriais notavam que, tendo existido apenas uma única máquina a vapor em 1834 (com uma força de 16 cavalos), havia agora 70 (com uma força de 989 cavalos). A crise, pensava-se, era momentânea.
Em parte, assim era. Em 1873, data da estreia de Cesário Verde como poeta, Fontes Pereira de Melo acabava de inaugurar o período que passou à história sob a designação de fontismo, ou seja, o longo arco temporal durante o qual a modernização do país avançou. Mas Cesário não esquecera os terríveis anos das pestes (1856 e 1857) - «Foi quando em dois verões seguidamente a Febre / e a Cólera também andaram na cidade…» - como não esqueceria a dureza da rústica lavoura, os cabelos esgadelhados das pobres vendedeiras da zona saloia ou o olhar rebelde dos artesãos que haviam sido despedidos das oficinas lisboetas. Como diria, em carta a Silva Pinto: «A mim o que me rodeia é o que me preocupa.» Isto não quer dizer que Cesário fosse uma espécie de percursor do neo-realismo. A quem tenha dúvidas recomendo a leitura de «Cristalizações» ou de «A Débil».
Até tarde na vida, não gostei de poesia. O que me haviam feito decorar no Livro da 3ª Classe («Batem leve, levemente…», de Augusto Gil) ou no Liceu (a divisão das orações de «Os Lusíadas») parecia-me uma maçada. Até na Faculdade, onde surpreendentemente, ao longo de três anos, escolhera as cadeiras optativas de Literatura Portuguesa I, II e III, a poesia passou-me ao lado. Ficou-me apenas o primeiro verso do soneto de Sá de Miranda, «O Sol é grande, caem co’a calma as aves…» Tudo mudou, quando li Cesário Verde na velha edição da Portugália. A sua musicalidade penetrou-me como um quarteto de Beethoven.
Li, deslumbrada, «O Sentimento dum Ocidental», imaginando o que ele sentiria enquanto percorria as ruas de Lisboa. Trata-se de uma viagem de alguém capaz de captar as cores, os cheiros e os sons da minha cidade natal: o cheiro da maresia, o ranger das chaves nas fechaduras, o tinir dos talheres num hotel. O poema passa da confusão do início - «Nas nossas ruas, ao anoitecer / Há tal soturnidade, há tal melancolia / Que o bulício, o Tejo, a maresia / Despertam-me um desejo absurdo de sofrer» - para uma visão lúgubre da cidade: «E, enorme, nesta massa irregular / De prédios sepulcrais, com dimensões de montes, / A Dor humana busca os amplos horizontes, / E tem marés, de fel, como um sinistro mar!» Pelo meio, aparecem as linhas inesquecíveis: «Se eu não morresse, nunca! E eternamente / Buscasse e conseguisse a perfeição das coisas!»
Agora, sim, sabia o que era a poesia. A ela fora levada pela clareza do olhar, pela atenção ao quotidiano e pelo anti-sentimentalismo de Cesário. Nada nem ninguém pode explicar um génio, e é de um génio que estamos a falar. Sou capaz de perceber a forma como Eça de Queirós, Camilo castelo Branco ou Júlio Dinis apareceram e se desenvolveram. Mas jamais conseguirei entender como foi possível a alguém, nascido fora das correntes literárias europeias, desprezado pelos intelectuais do período e exercendo a profissão de correspondente comercial, escrever como Cesário Verde escreveu.
Maria Filomena Mónica, historiadora

(Crónica, in jornal Público, 6ªF. 25 Fev. 2005
150 anos do nascimento de…)

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A poesia de Cesário Verde

Cesário Verde nasceu em 1855 e morreu em 1886 com 31 anos.